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Neoliberalismo e o mundo de coxinhas, asinhas, petralhas, recatadas do lar, entre outros.


O ex-presidente Fernando Henrique ficou marcado pelo início (ou continuidade) do processo de privatização. Hoje, mais de duas décadas depois, mencionar esse processo pode não ter grandes impactos, principalmente entre os mais novos. Ainda que os ouvintes tivessem ouvido falar sobre privatização, modernização do Estado, neoliberalismo, muitos não se esforçariam para defini-los.
O anonimato do processo neoliberal intensificado (tardiamente em relação aos EUA, Inglaterra, Chile) é um sintoma e também uma causa de seu poder. Mais recentemente essa ideologia esteve ligada a uma variedade de crises: a financeira de 2007/2008, a crise das offshores que culminou no que foi chamado de Panama Papers e, mais recentemente, a eleição de Donald Trump. A maioria de nós responde a essas crises como se elas emergissem isoladamente, aparentemente sem ter consciência que elas foram catalisadas ou exacerbadas pela mesma filosofia coerente.
Tão persuasivo que o neoliberalismo se tornou que quase nunca o reconhecemos como uma ideologia. Parece que aceitamos a proposição que esta utópica e milenar fé descreve uma força natural; uma espécie de lei biológica, como a teoria da evolução de Darwin. Todavia, a filosofia surgiu como uma tentativa consciente de redefinir a vida humana e mudar o locus de poder.
O neoliberalismo vê na competição entre empresas uma característica definidora até mesmo das relações humanas. Ela redefine cidadão como consumidores, cujas escolhas democráticas são melhor exercidas pela relação de compra e venda, um processo que premia mérito e pune a ineficiência. Essa relação propicia que o “mercado” entregue benefícios que nunca foram atingidos por meio de planejamento.
As tentativas de limitar a competição são tratadas como hostis à liberdade. A organização do trabalho e as conquistas coletivas dos sindicatos são pintadas como distorções do mercado que impedem a formação de uma hierarquia natural de ganhadores e perdedores. A desigualdade é posta como uma virtude: uma recompensa para utilidade que é geradora de riqueza, que pode enriquecer a todos. Esforços para criar uma sociedade mais igualitária são, sob esse viés, contra produtivos e moralmente corrosivos. O fim que se promete é que o mercado garanta a todos aquilo que merecem.
A internalização e a reprodução das crenças neoliberais ocorrem continuamente. Os ricos acreditam que adquiriram sua riqueza através do mérito, ignorando todas as vantagens – tais como educação, heranças e classe – que os ajudaram e ainda mantém isso tudo. Em contrapartida os pobres começam a se culpar por suas falhas e seus erros, ainda que possam fazer muito pouco para mudar suas circunstâncias.
Pouco se dá importância ao desemprego estrutural. Se você não tem um emprego é porque você não tem ambição. Não se preocupe com os custos de moradia: se seu cartão de crédito está estourado, você é incompetente ou não consegue poupar para o futuro. Não se preocupe se suas crianças não têm mais um pátio escolar para brincar; se eles engordarem, é sua culpa. Num mundo governado pela competição, aqueles que ficam para trás são autodenominados perdedores.
Entre os resultados para as do neoliberalismo estão, além do desemprego (quase) estrutural, algumas epidemias de automutilação, desordens alimentares, depressão, solidão, ansiedade e fobia social. Talvez isso não seja uma surpresa. A Inglaterra, onde a ideologia neoliberal foi rigorosamente aplicada, é a capital da solidão da Europa.
O termo neoliberalismo foi cunhado pela primeira vez num encontro em Paris em 1938 por Ludwing von Mises e Friederich Hayek. Vindos da Áustria, eles viam democracia social, exemplificado pelo New Deal de Franklin Roosevelt e o gradual desenvolvimento do estado de bem-estar da Inglaterra, como manifestações de um coletivismo que ocupou o mesmo espectro como o nazismo ou o comunismo.
Em The Road to Serfdom, publicado em 1944, Hayek argumentou que o planejamento governamental, pela anulação do individualismo, levaria inexoravelmente ao controle totalitário. O livro teve atenção de algumas pessoas ricas, que viam na filosofia uma oportunidade de se libertarem da regulação estatal e dos impostos. Em 1947, Hayek fundou a Mont Pelerin Society,  primeira organização que espalharia a doutrina do neoliberalismo. O patrocínio desta sociedade estava a cargo de milionários e suas fundações.
Com essa ajuda, Hayek começou a criar um tipo de neoliberalismo internacional. As pessoas ricas que o apoiavam fundaram uma série de organizações que atuavam para mudar opiniões e que poderiam refinar e promover aquela ideologia. Além dessas organizações, foram financiados ainda posicionamentos acadêmicos, particularmente nas universidades de Chicago e da Virginia.
A visão de Hayek que os governos deveriam regular a competição a fim de prevenir a formação de monopólios deu lugar à crença de que o poder de monopólio poderia ser visto como uma recompensa para a eficiência.
Em 1951, Milton Friedman, discípulo de Hayek, estava contente em se descrever como um neoliberal, mas logo depois disso, o termo começou a desaparecer. Mais estranho que isso é que a ideologia se tornou mais nítida e o movimento mais coerente. O nome perdido não foi reposto por nenhuma alternativa.
Depois da II Guerra, o neoliberalismo permaneceu às margens. Isso porque as prescrições de John Keynes foram as amplamente aplicadas. Os objetivos à época eram o amplo emprego e a diminuição da pobreza dos EUA e, principalmente na Europa Ocidental. Os governos procuravam resultados sociais, desenvolvimento de novos serviços públicos e ainda intensificação das redes de segurança social.
Na década de 1970, quando as políticas keynesianas começaram a desmoronar e as crises econômicas atingiram vários países. Nesse cenário, as ideias neoliberais começaram a ressurgir como pensamento corrente. Com a ajuda de jornalistas simpáticos e conselheiros políticos, elementos do neoliberalismo, especialmente suas prescrições para política monetária, foram adotados pela administração de Jimmy Carter nos EUA e pelo governo de Jim Callagan’s na Inglaterra.
Depois que Margaret Thatcher e Ronald Reagan tomaram o poder, houve uma intensificação de algumas medidas como cortes massivos nos impostos para os ricos, o achatamento dos sindicatos, desregulação, a privatização, outsourcing e a privatização de serviços públicos. Através do FMI, do Banco Mundial, do Tratado de Maastricht e da OMC, as políticas neoliberais foram impostas – geralmente sem um consenso democrático – na maioria do mundo. É difícil pensar outra utopia que tenha sido tão completamente notada.
Pode parecer estranho que uma doutrina que tenha a liberdade como base tenha se promovido com o slogan “não há alternativa”. Para Hayek, em visita ao Chile de Pinochet – uma das primeiras nações em que o neoliberalismo foi aplicado em larga escala – afirmou que sua preferência pessoal teria como base uma ditadura liberal mais que um governo liberal despojado de liberalismo. A liberdade que o neoliberalismo oferece, que soa tão atraente quando expresso em termos gerais, aponta para a liberdade para os que estão no topo, não para os que estão entre as minorias.
Liberdade dos sindicatos e conquistas coletivas significam a liberdade de acabar com os salários. Liberdade pela regulação significa a liberdade para envenenar os rios, colocar os trabalhadores em risco, cobrar taxas injustas e elaborar instrumentos financeiros exóticos. Liberdade de impostos significa liberdade de distribuição de riqueza que tira as pessoas da pobreza.
Os teóricos neoliberais advogam o uso das crises para impor políticas impopulares enquanto as pessoas estão distraídas. Por exemplo, logo após o golpe de Pinochet, após a Guerra do Iraque, o Furacão Katrina. Depois deste último Friedman afirma que era a oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional em Nova Orleans.

Onde as políticas neoliberais não podem ser impostas em termos internos, elas são impostas internacionalmente, por meio de tratados de comércio incorporando a questão do ajuste entre Estado e investidor. Corporações podem pressionar para a remoção das proteções ambientais e sociais. Quando, por exemplo, os legisladores tentam restringir as vendas de cigarros, águas de fontes protegidas, ou prevenir que as empresas farmacêuticas enganem o Estado, as empresas o processam, geralmente com sucesso. A democracia está reduzida a grande um teatro do faz de conta.
O crescimento econômico foi marcadamente menor na era neoliberal (desde a década de 1980 na Inglaterra e nos EUA) que nas eras precedentes, mas não para os mais ricos. Desigualdade na distribuição de salário e de riqueza, depois de 60 anos de declínio, emergiu rapidamente nessa era, devido ao achatamento dos sindicatos, das variações de impostos, de privatizações e de desregulamentação.
A privatização dos serviços públicos como energia, água, trens, saúde, educação, estradas e prisões permitiu que corporações construíssem pedágios para serviços essenciais e cobrassem de cidadãos ou do governo para seu uso. Quando você paga caro por um ticket de trem, apenas parte da taxa paga os custos de operação como óleo, salários, bonificações, entre outros. O resto reflete o fato de que você estará impedido, caso não pague o valor cobrado.
Aqueles que possuem os serviços privatizados ou semiprivatizados fazem grandes fortunas investindo pouco e cobrando muito. Na Índia e na Rússia, por exemplo, oligarquias adquiriram ativos estatais a preços abaixo do mercado. No México, por exemplo, Carlos Slim, dono de empresas, no Brasil, como Claro e Embratel,  garantiu o controle de quase todo o setor de telefonia móvel da América Latina e rapidamente se tornou o homem mais rico do mundo.

O financiamento tem tido impacto similar. Juros é como rendas não ainda não conquiestadas que se acumulam sem qualquer esforço. Como os pobres se tornam mais pobres e os ricos, mais ricos, os ricos adquirem controle sobre um aspecto crucial: o dinheiro. O pagamento de juros são transferências de dinheiro dos pobres para os ricos.
As quatro décadas passadas foram caracterizadas por uma transferência de riqueza não apenas dos pobres para os ricos, mas entre aqueles que geram sua fortuna produzindo novos bens e serviços para aqueles que geram seu dinheiro pelos controles de ativos, juros ou ganhos de capital.
As falhas do mercado, amplamente discutido pela Sociologia Econômica, são a razão dos prejuízos causados pelas políticas neoliberais. Por incrível que pareça, não são apenas os bancos que são difíceis de falirem, as empresas que ofertam serviços públicos. O empresário brasileiro Antônio Constantino que o diga. Isso porque serviços nacionais vitais não podem falir, o que significa que a competição não pode seguir, neste nicho de mercado, um curso natural de competição. Os negócios assumem os lucros e o Estado ficam ao fim e ao cabo com os riscos.
Quanto maior a falha do mercado, mais extrema a ideologia neoliberal se torna. Os governos usam crises neoliberais como desculpas e oportunidades para aumentarem impostos, privatizarem serviços públicos ainda remanescentes, desestruturam a rede de segurança social, desregulam empresas e sobretaxam cidadãos.
Talvez o impacto mais perigoso do neoliberalismo não seja a crise econômica, mas a política. Como o domínio do estado é reduzido, nossa habilidade de mudar o curso de nossas vidas por meio do voto também diminui. Ao invés disso, a teoria neoliberal aponta que as pessoas podem exercitar a escolha por meio de seus gastos. Contudo, alguns têm mais para gastar que outros. Na democracia do grande consumidor, votos não são igualmente distribuídos. O resultado é um desfavorecimento de pobres e pessoas de classe média. Como partidos de direita ou de esquerda adotam políticas neoliberais similares, esse enfraquecimento se torna uma falta de direito à cidadania. Muitas pessoas são, assim, alijadas da política.

Estudos apontam que os movimentos fascistas constroem sua base não sobre os politicamente ativos, mas sobre os inativos. Os perdedores que sentem - corretamente - que não têm voz ou papel no cenário político. Quando o debate político não mais se comunica com a massa, as pessoas se tornam receptivas a slogans, a símbolos e a sensações. Para os admiradores de Trump, por exemplo, fatos e argumentos parecem irrelevantes.
Com sua perda de voz resta nas interações entre pessoas e Estado apenas autoridade e obediência. O totalitarismo emerge quando governos, tendo perdido autoridade moral que surge na oferta e na entrega de serviços públicos adequados, são reduzidos a encurralar, a ameaçar e a coagir as pessoas a fim de uma obediência legal (ou policial).
Como o comunismo, o neoliberalismo é um deus que falhou. Todavia, a doutrina assombra a plena luz do dia, e uma das razões para isso é o anonimato. Ou ainda, um cluster de anonimatos.
A doutrina invisível da mão invisível é promovida por apoiadores invisíveis. De maneira lenta, bem lenta, começamos a descobrir o nome de alguns desses anônimos. O Institute of Economic Affairs, por exemplo, arguiu de maneira forçada na mídia contra uma maior regulação da indústria de tabaco. Todavia, esse mesmo instituto é secretamente financiado pelo Bristish American Tobacco desde 1963.
As palavras usadas pelo neoliberalismo geralmente escondem mais que elucidam. O mercado soa como um sistema natural que está sobre nós igualmente, tal como a gravidade ou a pressão atmosférica. Todavia, o mercado está cheio de relações intrínsecas de poder. O que o mercado quer tende a significar o que as corporações e seus dirigentes querem. Investimento significa duas coisas diferentes: Uma é o financiamento de atividades produtivas e socialmente úteis, a outra é a negociação de aspectos existentes dirigidos a cobrar rendas, juros, dividendos e ganhos de capital. Usando a mesma palavra para diferentes atividades somos conduzidos a confundir extração de riqueza com criação de riqueza.
Esse anonimato do neoliberalismo é ferozmente protegido. Aqueles que são influenciados por Hayek e Friedman tendem a rejeitar o termo, mantendo – com justiça – que o termo é usado hoje apenas pejorativamente. Todavia, não nos oferece substitutos. Alguns se descrevem como liberais ou libertários, mas essas descrições são igualmente enganosas e curiosamente modestas.
Por tudo isso, existe alguma coisa de admirável no projeto neoliberal, pelo menos nos últimos estágios. Foi uma filosofia distinta, inovadora promovida por uma rede coerente de pensadores e ativistas com um claro plano de ação. Foi paciente e persistente. 
O triunfo do neoliberalismo também reflete a falha da esquerda. Quando a economia do laissez-faire levou à catástrofe de 1929, Keynes desenvolveu uma ampla teoria econômica para repô-la. Quando o gerenciamento da demanda keynesiana cessou na década de 1970, uma alternativa já estava pronta. Mas quando o neoliberalismo se despedaçou não surgiu nada para repô-lo. A esquerda e o centro não produziram nenhum novo arcabouço de pensamento econômico em mais de sete décadas.
Toda invocação a Lord Keynes é um reconhecimento de falha. Para propor soluções keynesianas para a crise do século XXI é preciso ignorar três problemas óbvios. É difícil de mobilizar pessoas em torno de velhas ideias; as falhas mostradas na década de 1970 ainda não se foram; e, mais importante, muito pouco se tem a dizer sobre a relação do aumento do consumo e a crise ambiental presente em todo o mundo, seja o rico ou o dos pobres.


O que a história do keynesianismo e do neoliberalismo mostra que é preciso muito para se opor a um sistema, mesmo falido. Uma alternativa coerente deve ser proposta. A tarefa central deveria ser o desenvolvimento de um programa ligado às demandas do século XXI que elevasse de maneira equânime a sociedade a patamares mais justos e viáveis. Um mundo em que coxinhas, asinhas, petralhas, recatadas do lar tenham valores iguais.



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