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Decidi que a morte não pode ser devagar. Há muito que viver!

Depois de tanto tempo sem dar um retoque nesse meu diário de bordo, ambulante e virtual que é, e ao deparar-me com um poema-oração de Martha Medeiros que me foi enviado por uma ex-aluna sob o dizer que tinha a minha cara, resolvi que a mensagem enviada não podia ser guardada só para mim. Tenho que compartilhar e alertar o máximo de pessoas que, de uma forma ou de outra, estão a morrer lentamente por aí. Diga-se aqui que não estão morrendo porque estão adoentados, mas ao contrário, estão morrendo porque estão vivos, porque escolheram (tristemente) se desligar aos poucos da vida e esperar o trem da morte passar. Estão se dirigindo mais rapidamente à morte, mas por livre e espontânea escolha. 
Não sei se a ex-aluna e amiga, ao enviar o poema, referia-se à energia que tento passar para outras pessoas sobre a vida, o prazer, o sofrimento; ou se queria me dizer outra coisa, tal como me alertar que estaria eu também morrendo e me aproximando a passos (largos ou curtos?) dessa morte. Certo é que estou ficando mais velho a cada dia, sobretudo nesses em que completo mais um outono de vida. Além disso, os estudos doutorais, as viagens feitas pelo Velho Continente, as pessoas que conheci nesse tempo de descobertas, mas, e principalmente, o contraste de todo esse meu novo mundo com o meu velho mundo, real e rotineiro em que habito hoje, parecem-me anestesiar e contribuir com essa morte, de certas e muitas formas. 
Todavia, ao ler parte desse poema-oração e lembrar de tantas coisas que ainda quero e preciso fazer, decidi mesmo que a vida é bela porque pode ser refeita. Não quero mesmo, tal como o samba diz, deixar que a vida me leve. Quero sim, chegar ao final desta vida, mesmo que Deus me conceda uma bem breve, e sentir alegria e orgulho ao dizer que valeu à pena ter vivido. Olhar e ver que a vida, tal como sempre tive certeza, não poderia ter sido encerrada quando criança (quem conhece minha história, sabe o que digo). Olhar e ter a certeza que fui referência (pequena, talvez) em algum ponto da vida para algumas pessoas e que pude contribuir para uma vida melhor delas e não para suas melhores mortes.
Mudar histórias para mudar a História. Há, portanto, ainda muito o que fazer.

A Morte Devagar   

Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja quem não lê quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

Comentários

  1. Rogério
    Muito bom o texto... bom para refletir e ajustar o curso da vida... e em alguns casos, fazer uma adaptação do roteiro.

    grande abraço.
    Mauricio Barros

    ResponderExcluir
  2. Muito bom...texto de reflexão e ajuste de ponteiros na nossa tela do tempo! As vezes precisamos ser protagonistas de nossas vidas, realizando papéis novos, interligando o velho homem e o novo homem... Obrigada pela leitura!

    Abraços,

    Leidiane Santana

    ResponderExcluir
  3. Excelente reflexão! Muito bem vinda para os dias atuais não é mesmo? Adorei ler: "decidi mesmo que a vida é bela porque pode ser refeita". Concordo com esse pensamento...a gente inventa e reinventa...sou fã de seus textos...continue escrevendo e nos dando a dádiva de refletir, sorrir, pensar!

    Abçs

    Nadja Villela

    ResponderExcluir

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