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Não vão assistir ao filme "12 anos de escravidão" !!!!


Embora pareça contrastante, como psicólogo, eu detesto dar conselhos. Isso porque minha profissão, diga-se de passagem, exige outras relações e atividades que não apenas dar conselhos. Todavia, com o filme americano “12 anos de escravidão”  a que assisti esse fim de semana, quero superar essa minha tendência e dar um conselho a todos: NÃO VÃO ASSISTIR AO FILME ”12 ANOS DE ESCRAVIDÃO".
Não vão assistir ao filme porque efetivamente não é uma película para todos. Vão assistir Guerra nas Estrelas, Harry Potter, Mickey Mouse. Esses filmes são mais empolgantes. O filme de que falo, em verdade, é para alguns poucos, fortes o suficiente para aguentar várias cenas de violência e racismo infligidas aos negros escravos do sul dos EUA do fim do século XIX. Fortes para aguentar, por exemplo, ver uma escrava, depois de ter saído a outra fazenda pegar um pedaço de sabão para tomar banho, alegando que não aguentava mais seu próprio odor, ser açoitada quase à morte por seu “amo” (ou “master” na linguagem do filme). Melhor mesmo será você ficar em casa e assistir pelos jornais a cena do negro deixado nu em um poste por alguns justiceiros (provavelmente brancos) em praça pública do Rio de Janeiro por ter sido pego em furto e, quando não aguentar mais aquela balela trocar, trocar de canal e continuar a assistir a sua novelinha predileta.
Não vão assistir ao filme porque efetivamente a temática não é apropriada para o caso brasileiro. Trata-se apenas de um fato isolado da história americana. Aqui os negros são realmente livres. Livres da discriminação, da miséria, da subserviência, da segregação, da escravidão em sua própria terra. Afinal, vida, liberdade e felicidade estão assegurados constitucionalmente a todos nesse país abençoado por Deus. Isso, graças a lutas intensas de uma classe esclarecida e dominante que colocou em prática já há muito anos ações afirmativas como as das cotas nas universidades ou o do bolsa família. Essas lutas permitiram excelentes saltos socioeconômicos, o que trouxe aos negros brasileiros suas definitivas cartas de alforria.

Não vão assistir ao filme porque efetivamente não sairão mais felizes do que quando entraram. Prefiram alguma comédia romântica parisiense ou um filme de ação hollywoodiano. Os que assistem ao filme podem ser tocados em sua consciência de que muitos de seus próprios comportamentos diários carregam uma ideia escravagista perpetrada por gerações, conscientemente ou não. Como a ideia de que empregada ou o gari que limpa a rua são pagos para servir, a qualquer custo e sob quaisquer condições. A ideia escravagista de que lugar de empregada é na cozinha e não junto à mesa na hora das refeições. A ideia escravagista de que certos ritmos musicais são de preto e pobre ou que baile funk e ensaio de escola de samba é lugar apenas para ir (e não para voltar em outro horário, por exemplo, para ver o que há além daquele espaço). A ideia de que há espaços reservados em função da atividade que se exerce ou dos bens que se possui, por exemplo, sendo o elevador social lugar privativo dos Excelentíssimos Senhores. Ou ainda, enxergar com a maior naturalidade a atividade corriqueira de ambulantes de praias como os de Salvador, todos negros, que vão e vêm com regadores cheios d’água, em troca de alguns míseros centavos, refrescar os pés dos brancos que estão debaixo de sombra e água fresca.

Não vão assistir ao filme porque não vale o preço da entrada. Prefira outros filmes ou vá comer um Big Mac com uma Coca-Cola. Portanto, não sigam o exemplo de alguns poucos espectadores (uns setenta, que, sequer perfaziam a metade da sala) que resolveram perder alguns de seus reais. Mais ainda, não sigam o exemplo, dos únicos cinco negros que havia na sala de exibição (eu fiz questão de contar à saída). É muito custoso e perigoso mostrar um filme com este conteúdo às grandes massas de negros e brancos nas periferias ou nos rincões de pobreza do Brasil. Isso pode levar a repensarem nossa História, nossa estrutura social, nossos heróis e ídolos que criamos (ou que não temos).
Não vão assistir ao filme porque ele tem um quê sensacionalista e reproduz o idealismo americano. A liberdade vir justamente por meio de um homem branco e bonito como Brad Pitt estraga coloca toda a lição que o filme transmite. Sim. Sim. Por isso prefira a normalidade da vida e a sujeira a que muitos negros estão sujeitos, no Brasil e fora dele, que você finge ver. Sujeira, por exemplo, de realizar os trabalhos menos valorizados. Sujeira de morar nas regiões mais periféricas. Sujeira de não terem acesso a ensino básico e fundamental de qualidade e terem oportunidade apenas a uma bonificação com programas de bolsas universitárias, por exemplo. Sujeira de pagarem muito caro com suas vidas encarceradas nas prisões. Sujeira e prisão X beleza e liberdade: quem será que ganha o duelo?

Portanto, por isso e muito mais, não vão assistir ao filme. Apartheid, escravidão, direitos civis dos negros, racismo são palavras importadas e de um tempo bastante longínquo. Afinal, o sonho daquele negro americano do século passado, pastor batista, já se realizou há tempos, aqui e acolá. Hoje todos somos julgados não pela cor de nossa pele, mas pelo conteúdo de nosso caráter. Todos nós andamos juntos, livres, verdadeiramente livres. Afinal, aqui no Brasil, e em outras várias partes do mundo, foram apenas 12 anos de escravidão, e nada mais.

Comentários

  1. Aqui está mais uma prova de que a escravidão em nosso país não acabou..
    http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1412492-bolivianos-sao-vendidos-em-feira-livre-no-centro-de-sao-paulo.shtml

    ResponderExcluir
  2. Amigo e professor, vc me surpreende sempre... Para mudar histórias é preciso mudar mentalidades( ao menos tentar) assim como vc tem feito.
    Obrigada pelo trabalho que realizou( intencionalmente ou não) na minha vida. Parabéns pelo texto.
    Com afeto,
    Sua amiga e aluna

    ResponderExcluir

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