Por acaso não sou nenhum pouco fã dos textos da Revista Época, todavia ao ler o texto abaixo em um post no face fiquei encantado com a qualidade da provocação que a autora faz. A poucas semanas de eu virar um legítimo doutor (leia-se cursado Doutoramento, com tese apresentada a banca, como se refere a autora), mas principalmente por ser um propagador da igualdade entre as pessoas (já até me chamaram de feminista por isso, mas sempre digo que esse adjetivo também é preconceituoso e também merece desaparecer, tal como o machismo), resolvi replicá-lo aqui para que mais e mais pessoas possam ler e pensar a respeito.
Desculpem lá os amigos médicos, delegados e advogados.....
Por ELIANE BRUM
Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados
e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?
Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda
quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o
mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como
a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos,
acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no
segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado
sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que
revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos.
Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos.
Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua:
esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de
um advogado.
Travo minha pequena batalha com a consciência de que a
língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no
campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em
si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo
de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da
História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo
de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil.
Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que
somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de
resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia
os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete
“doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os
mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas,
com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do
cidadão, essa acepção caiu em desuso”.
Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua
força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como
arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil
mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela
expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade
brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica
– e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres
tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam,
dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O
“doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas
como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do
cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.
Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um
carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna
semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora,
intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:
- E como os fregueses o chamam?
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O senhor chama eles de doutor?
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- É esse o segredo do serviço?
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a
partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo –
contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas
últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro
para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo
engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não
desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.
Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o
outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando
ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que
a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante
assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais
popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição –
mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo
nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente
das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.
Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos,
está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados
parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas
mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura,
não era de se esperar um declínio também deste doutor?
Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna,
deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à
sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e
na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria
num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”,
teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o
título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um
decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais
no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser
“doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido
“naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.
Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o
artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco
anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis
formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se
habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem
formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei
a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à
livre-docente.
Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de
Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns
membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto
do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o
que veio depois?
O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto
imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas
enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade
do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou
bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme
desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais
moldam a vida cotidiana.
É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do
Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder
sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo
tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no
qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No
início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados,
promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor
beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?,
pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços,
tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e
assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente
compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal,
no amplo sentido do termo.
No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título
de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade
patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico
ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é:
depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco,
impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência
se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o
poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das
intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto
juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a
morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice
é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.
O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor,
delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das
mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado,
juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos.
Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros.
Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a
eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.
Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a
medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela
porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa
posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o
que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de
uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor,
juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para
tornar-se objeto de intervenção.
Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são
deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor”
permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de
classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça
quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais
ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de
defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o
direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de
desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode
garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a
cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida
brasileira.
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos
“doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem
o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz
de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados
do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante
da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério....” Não conheço em
profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito
significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um
tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela de
médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado
para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser
chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a
formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força
simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e
dos direitos. A estes, meu respeito.
Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado
por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral
isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo
além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la
diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de
muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também
requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas
universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.
Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito
no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e
na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral,
nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula
ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre
o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza,
os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade
da sociedade brasileira.
Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço
apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece
soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e
de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança.
Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda
uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será
demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.
Eliane
Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios
nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma
Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes –
O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E
codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen
Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)
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